quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Noite adentro

Silêncio. Faz quase 3 horas que estamos ali. A madrugada é sempre o horário mais frio, mas é o que deixa as coisas mais emocionantes. Uns estudando, outros ouvindo música, outros não desgrudam do telefone: "Não, meu bem... eu juro que estou trabalhando.". As desculpas não mudam muito.


Enfim é dado o sinal. Na escuridão, a única luz que brilha é a vermelha e branca, alternando-se de forma tediosa. Ouve-se o cantar dos pneus do carro e o barulho alto, constante, inconfundível.

A caçada começa. Esse momento se repete duas, três vezes por noite, mas ainda assim, sinto cada músculo do meu corpo tensionado. O frio na espinha jamais desaparece. Essa sensação é sentida mesmo por aqueles com 10, 20 anos de casa.

A cada curva, a esperança de encontrar a presa. Sei quais são as motivações de cada um. Hugo sempre quis ser polícia. Araújo queria um bom emprego e estabilidade até que terminasse a faculdade. Figueira sempre demonstrou uma certa sede de sangue e achou que ali poderia satisfazê-la. Salles tem 3 filhos para sustentar. Eu ainda não sei exatamente o porquê de estar ali, talvez um pouco de cada um, talvez nenhum deles, mas neste momento, nosso objetivo é apenas um, a presa.

Os pneus gritam, assustando os poucos transeuntes que fazem uma mera idéia do que está ocorrendo. Cães fogem a nossa passagem, luzes se acendem. Pouco presta-se atenção aos arredores pois o alvo encontra-se mais a frente, provavelmente tentando escapar mais uma vez a este encontro.

Enfim, nos encontramos. Por um instante, ao ser iluminado pela luz vermelha, o sangue dele gela. O nosso ferve. Esperamos o próximo movimento da caça, planejando mentalmente qual a será nossa reação. Não falamos, mas sabemos exatamente o que cada um terá que fazer. Então, ele se move. Usa todas as forças para se distanciar. A reação é instantânea. Somos três. Como um só avançamos de maneira rápida e constante. Cada um tem como maior responsabilidade a vida do outro. A caça nos une no nosso objetivo, mas ainda temos nossas motivações particulares.

Ouvimos cães latindo a medida que o alvo passa, invadindo territórios, atrapalhando descansos. Muros de madeira e papelão caem. Ele os atravessa numa linha reta. Os cortes e contusões sofridos não são sequer sentidos. Ele precisa sair dali. Ele precisa escapar.

Os caçadores continuam avançando. Agora somos dois. Hugo ficou para trás para garantir nossa passagem. Olho para Figueira brevemente e percebo uma ponta de sorriso. Ele sempre se diverte quando eles fogem. Mas reconheço aquele sorriso e sei que não posso deixá-lo chegar primeiro à caça. Ele nunca pode ser o primeiro. E é um constante desafio impedir que isso aconteça.

Enfim, ouvimos gritos. Nem todo mundo gosta de ter a casa invadida às 3 da manhã. A caça enfim está sem um refúgio. Acabou.

Olho para o lado, Figueira não está ali. Ele pegou um atalho. Ele vive pra isso.

Minha respiração já está ofegante. Tento em um último esforço correr mais do que ele. Atravesso as mesmas paredes que a caça ferida atravessou. Encontro olhos assustados, mas não dou atenção a eles. Meu alvo mudou. Não posso deixar que ele chegue primeiro. Ele nunca pode chegar primeiro.

Então, vejo uma silhueta. Lá está ele. A postura o entrega. O sorriso agora é largo. Ele me venceu. De novo.

Os olhos da caça me encaram por um momento. Ela percebe nesse momento que não deveria ter fugido. Elas sempre percebem isso tarde demais.

Figueira chegou primeiro.

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